segunda-feira, 6 de julho de 2009

manual de putz sem pesares

Aquário

Sobrevive-se. Assim temos a certeza de que o dia de ontem existiu. Sobrevive-se. E também porque Samuel continua aqui na minha frente. E o que ele faz agora, que faz com que eu chegue a essa conclusão? Recorda. Samuel recorda aquilo no que acredita. E no que ele acredita? Samuel acredita que o tempo aqui onde estamos não avança. Eu vejo, todavia, o resultado do talho dos anos em todas suas feições. Então Samuel recorda, não um tempo perdido atrás de sua nuca, porém um presente impalpável bailando na ponta do seu nariz. Eis o quê, sua memória. Quando foi que tudo se deu? Agora, enquanto Samuel me narra quanto eu o narro. A infância de Samuel está com o Samuel de agora. O ônibus que o levou para escola leva o Samuel de agora para aquela escola que é a escola de agora para o Samuel de outrora no Samuel desse momento. Tudo ocorre aqui. Este, o lugar de dentro e de fora de Samuel. No entanto, é Samuel incapaz de reconhecer-se no que diz. Pois quando diz, imprime. E o impresso é já passado, e Samuel é incapaz de enxergar suas costas. Analítico demais quando delira o Samuel. Delirante demais quando tento registrar migalhas de ações com as quais Samuel diariamente me presenteia. Às vezes ele me olha pelo vidro do aquário, como que me pressentindo (já que de dentro para fora o vidro do aquário é espelhado) e pergunta: Qual foi a última vez que geou? Talvez, aliás, faça a pergunta a si mesmo. Nunca saberei. Se ao menos Samuel conhecesse meu nome. Ou houvesse me dada um apelido, enfim, algo a que se apegar. Mas não, tudo o que diz é “qual foi a última vez que geou?” Eu, em contrapartida, apenas sussurro: Samuel, este não é o aposento da mamãe. As mães, sempre as mães. Samuel também teve a sua. A mãe de Samuel lhe cobrava que estudasse. Samuel não gostava de estudar. Gostava de fingir que ia para escola. Ia a pé e sozinho, não titubeava em desviar o caminho e sumir o dia inteiro. Voltava para casa sempre com a boca suja de terra. Agora Samuel está comendo bem. Em verdade “bem” não é a palavra. A alimentação dele é balanceada. Ele mesmo se serve. O estoque é reposto uma vez na semana. Às vezes Samuel acaba com o estoque rapidamente e fica sem alimento até a data da reposição. A geladeira foi uma conquista de Samuel. A manutenção dos alimentos, para que durem a semana toda é o seu próximo passo. Ele está em frente a geladeira agora. Com dificuldade abre o freezer. Tira uma garrafa presa no gelo. Destampa a garrafa. Bebe metade do líquido transparente no gargalo. Tampa a garrafa. Fecha o freezer. Chacoalha a cabeça. Deita-se. Samuel vai dormir por horas. Não lembro como foi, nem de quem trouxe Samuel para cá, ou mesmo por quê. Chamo o lugar de Aquário por falta de criatividade, além do mais Samuel não é nenhum peixe, isto é óbvio. Ele não me escuta, nem me enxerga, eu já disse. Cada vez que Samuel ofega, ofego eu. Com certeza já perdi as contas de quanto tempo Samuel está aqui. Assusta-me, no entanto, a quantidade de moscas que há ao redor dele sempre que acorda. Os animais sem ferrão não têm medo de se coçar. Samuel vive com a pele irritadiça. As moscas não o respeitam, possivelmente porque não compreendem sua linguagem, seus gestos não conclusivos, seu olhar de “não se aproxime.” Eis a galeria dos olhares de Samuel: não se compadeça. Ou: piedade? E ainda: aqui ó pra vocês! Falo do olhar de Samuel, de qualquer modo, não devo esquecer que no começo era todo ele tão somente uma boca. Se nunca me escutou será surdo? Contra quais exterioridades então tanto pragueja? Aos poucos vi surgir testa, cabelos, talvez o cérebro, senão o que o seu perturbado fluxo de consciência? Agora é nítido o nariz que escorre sem parar, sangue. Samuel já existe do pescoço, pomo de adão, para cima. Então passa a ter um tronco, nada opulento, magro, raquítico. Depois, braços, cotovelos que doem, mãos (garras?), dedos com unhas compridas, grossas e amarelas. E finalmente a bacia, órgãos sexuais, coxas, joelhos, panturrilhas, pés, tendões, calcanhares. O que afirmo, nego. Samuel ainda é uma boca. E não saberia executar o que fosse que precise para ser compreendido. Abrevio Samuel: Ele não é plausível, não é coerente. Samuel não executa suas ações sem que elas se desarticulem para além dos limites da verossimilhança. Samuel, esta pantomima do que foi no que é. Um déjà-vu? Ou uma permanência? E eu? Eu não. Sou mera visita. Esqueci-me do que a permanência é, esqueci, não porque não a deseje, mas por ser permanente o que me esfarela. Sou muitos esquecidos farelos. Não me aliei à Samuel. Ele é minha sombra, está e não está, dependendo de como incide a luz. Pergunto-me, é o que faço com insistência, perguntar-me. O que dizer a propósito da ênfase que têm os ausentes para mim. Esta é uma questão. Samuel também é uma questão, mas ele está aqui, dentro do Aquário. Minha nossa, sou apenas um enfermeiro confuso. Não sei se recebi ordens de me ocupar de Samuel ou se o faço justamente por não ter com o que me preocupar. Os dois, certamente, ou nenhum, talvez. Se Samuel recorda, recorda-me? Recordo eu. Foi assim que vim parar aqui: Estou em férias e me ligam: Você foi agraciado, venha agora. Uma convocação? Sim, é urgente, venha, é seu trabalho. Interrompo as férias e venho, afinal é meu trabalho. Mínimos dramas, money. A princípio, não estou em busca de uma fuga. Samuel, segundo me informam os superiores, está. Improvável a fuga de Samuel já que ele preso não está. Sua condição de agora, dizem, é para seu próprio bem. Aqui Samuel está seguro, fazem-me acreditar. Ele não é decrépito, degradado ou mutilado. Discordo. E eu? Eu não. Samuel é que é um homem-rato, um rato-humano. Pergunto-me: O que será que se pergunta Samuel? Que a paz é um monólogo? Que paz, a interior? Então é esse o assunto? Duvido. Dêem-me cólera, não me dêem paz. Sou apenas o ouvinte de Samuel. Não disputo. Discutir, não discuto. Cuido dele? Em termos. Eu o observo, com certeza (sem certezas) eu o observo. Tão somente uma orelha e dois olhos é o que sou. Agora não, quem sabe pela manhã Samuel colheu uvas. Ele me deu a honra dessa contra-carta. Disse-me: É assim que se dança, redigindo. Porque dança Samuel não consegue dormir. Fecha as pálpebras e prossegue ligado feito uma lâmpada detrás do abajur. A vacina, hora da vacina, ele mesmo a aplica em seu bíceps. Sem ela como pegará no sono se mesmo o sono está em chamas entre o que é e o que foi Samuel? Samuel não dorme, baba. Samuel anestesiado. E Samuel é a fúria de Samuel. Decepo agora minha branca mão enluvada de látex. Por quê? Porque acabo de dar uma facada em Samuel. E por que dei uma facada em Samuel? Porque dei uma facada em Samuel, fujo. Fujo? Fujo. Um dia fera, noutro verme, tanto eu quanto ele. Foi ele quem começou, a culpa é dele, Samuel avançou sobre mim aquela sua mão bordô, cheia de veias. Devo ter-lhe dito que parasse com aquilo. Sim, eu sou pacífico. Devo ter dado o aviso. Sim, eu dei o aviso: Pare com isso, Samuel, eu disse, devo ter dito. E a mão dele vindo, um vermelho espesso, a abrir e fechar. A virulenta mão de Samuel. Garras, sim, as garras de um homem-rato. E então: Áhááháááhhh!, a facada. Agora não estou mais por perto. Não sei onde estou, nem quão longe. Novas férias, forçadas, próximo do que não conheço. E o que não conheço não reconheço. E no que não reconheço não me reconheço. Isso me assusta, isso de começar do zero. Sim, já devem ter encontrado o corpo de Samuel, digo, do que foi um dia Samuel. Agora é ele um mingau rubro e pegajoso estendido no fundo do Aquário.

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