sexta-feira, 3 de julho de 2009

pecinhas para uma tecnologia do afeto

Um balé
[eventualidade premeditada]
..
A atriz está sentada no colo da Pina Bausch. Não vamos chamar suas coreografias de coreografias. Chamemos de arbítrio.


eu me pergunto se esse poderia ser o texto único a
passar nas mentes da platéia
as pessoas que ali estivessem não conseguiriam pensar
coisas próprias e específicas e variadas, não
elas pensariam exatamente esse texto
ou um texto que descrevesse a minha dança com minúcia
detalhadamente

A bailarina está em cena. Seria um balé livre o dela, não fosse um balé intencional. É que não há liberdades para a intencionalidade, embora exista algo bem parecido com a liberdade, mas o nome que se dá é outro.

vendo que não posso me levantar daqui
porque o trauma dos últimos acontecimentos em mim
foi devastador a tal ponto que se a platéia ousasse
assumir para si o corpo rijo
torneado, suado e veloz do meu balé, eu ficaria bem satisfeita

Estamos escutando sua voz, e a voz não é livre, pelos mesmos motivos que a coreografia não é livre, a voz não é livre. Todavia, pode que o que a bailarina fala seja a música que a bailarina dança, ou não (arbítrio).

e por isso, para isso
eu poderia estar então em cena dançando
e não aqui sentada em rodas
mas dançando
que é o que na vida mais gosto
e enquanto eu dançasse palavras, frases
exatamente esse texto iria sendo escrito
a cada volta, salto
movimentos que estariam dizendo por mim

Um nome, isso, uma nomenclatura, ou mais do que isso, um conceito, isso, um conceito nos ajuda a definir a dança progressiva na qual atuará a bailarina. Ei-lo (o nome): estatísticas da contra-liberdade estática. É um nome-conceito e tanto, no mínimo eufônico.

vocês estão ouvindo essas potentes caixas
por onde a música dos meus pensamentos vai saindo de
dentro das trevas das minhas pernas entrevadas?
estão ouvindo?
estão!?
estão estão ESTÃO OUVINDO!!!?
EU QUERO ESTOURAR MINHAS PERNAS!!!!!

Nesse momento outra bailarina, ou um duplo dela mesma, está fugindo entre as pernas da platéia, enfiando-se nos fundilhos das calças dos homens, digo, em galerias de esgoto.

eu, quando danço, sou toda o meu oposto que é
quando não danço
porque uma cadeira não dança, não anda
a minha aerodinâmica não pactua
com a aerodinâmica dessa cadeira que, hoje
sou eu quando danço

Ela é uma heroína. Cruza a cidade de cabo a rabo, digo, a platéia, por seus subterrâneos. Entra em seus sentimentos, em seu universo subjetivo de platéia, de indivíduos sem salvação.

quando eu danço (mas já não danço) eu fatio as trevas
como fatiasse queijo e goiabada, ou a carne no açougue
para se estar sentada não são mais válidos
métodos e técnicas
a elegância é transitória
a minha dança está nessa brecha entre duas
elegâncias, duas belezas
a de tentar algum impulso e frustrar-me
e foi a falta de pudor que me trouxe a isso
a falta de lógica
ter calculado errado o que não deveria
chamar-se erro

Até que, feito uma rolha explodida, a bailarina sai de dentro daquelas pessoas, pela boca de um, pelo cu de outro, pelos poros de alguns, olhos, suor das axilas. Quando a bailarina sai da platéia por inteiro, a sala fica por alguns minutos aprisionando um silêncio irrespirável, até que borbulham palmas. Daí a bailarina se põem a contar quantas palmas soam, é o seu estudo das estatísticas da contra-liberdade estática. Como as palmas não cessam nunca, a bailarina volta a dançar grotescamente. E é óbvio que aquilo é um berro. E é óbvio que o berro grotesco do corpo da bailarina, principalmente de suas coxas e ventre, está dizendo quê.

as estatísticas contam
a história das estatísticas (aliás nem isso)
e não a história dos eventos da
humanidade

Mas ela se ferra com tal afirmação. Ninguém dá o mínimo de crédito para bailarina, porque ela ainda está dançando com intencionalidade como fosse um animal doméstico. Um animal doméstico feroz, é verdade, mas ainda assim um animal doméstico. Então a bailarina acaba que está mesmo aprisionada nesse esgoto. Tanto esforço e não houve pensamento de humanos que dançassem em comunhão com seu ocaso íntimo, pois toda a eventualidade fora premeditada. E os pensamentos dos humanos que a assistiram não puderam ser domados, nem libertadados, nem nada. As coisas permaneceram exatamente iguais. O tempo não passou, apenas os segundos passaram. Foi como se a beleza da ação houvesse funcionado como instrumento de tortura para aquela platéia que então se dirigia, cada um para sua casa, todos emancipados da insônia da bailarina e sua cadeira. A cadeira, da qual não sairá nunca mais.

Pensar que a cadeira é o colo de Pina Bausch é o que a faz prosseguir.
.
*essa é para Rúbia fazer

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