A anônima
.
O panfleto dizia: Massagens – venha relaxar com belas garotas, 3222-3416, apartamento central, discreto e aquecido, venha sem compromisso, belas ninfetas. E, mais abaixo, em letras pequenas: Atendemos homens e mulheres. A anônima pensou: Por que não? Daria qualquer coisa por uma namorada de 16 aninhos molhando-se toda de urina em seus dedos tentaculares. No braço trazia a bolsa e três sacolinhas das Casas China (a classe média alta também frequenta as Casas China). Dentro de duas horas teria que buscar os filhos na escola de inglês. Mesmo assim segurou o celular e discou o número do panfleto sentindo-se uma kamikaze sem capacete. A anônima adorava meninas com timbre vocal que lembrassem cantoras de jazz. Adorava ruivas com batom de uva nos lábios. Adorava a postura de alguém sobre um salto agulha. Nada a satisfazia mais do que uma princesinha com cara de frequentadora do Shopping Crystal, meninas indefesas do Batel, as inocentes do Batel. O sol entrava por uma fresta do vidro fumê de seu Audi, aberto dois dedos. A anônima meteu a mão no porta-luvas e de lá tirou um estojo de maquiagem. Podia sentir o seu próprio cheiro, sabonete de frutas cítricas e entranhas a subir-lhe às narinas. Precisou se controlar para não cometer uma siririca ali mesmo no estacionamento, fechada agora com alarmes em seu quatro portas já alguns anos desatualizado. Pensava agora que sempre quisera ter um piercing no umbigo e outro no mamilo, talvez mais um no meio da língua, porém se censurava, sabia que Lúcio não aprovaria. Enfim, ela disca o número, e, ao fim do quinto toque, uma voz sexy atende o telefone. A anônima desliga imediatamente como que lutando uma espécie de jiu-jitsu com as próprias entranhas. Pergunta-se por que jamais havia revelado a Lúcio que não passa, ela, anônima, de uma ninfomaníaca descerebrada? Como era possível que enganasse o marido por tanto tempo? Sim, estava ciente de se transformar rapidamente em uma balzaquiana entristecida, fedendo a arame farpado nas coxas, com os cremes da expectativa. E por que, merda, tinha ela que fumar tanto? Esperava com sofreguidão que algum maloqueiro, algum vândalo a abordasse na esquina de casa e a violentasse. Quietinha, vagabunda, eu sei que você está louca por isso. Tudo o que a anônima queria era gozar, não importava se fosse na rua, em seu quarto debaixo de acolchoados, ou se em um banheirinho de azulejos sebosos e azuis-claros rejuntados, com cortinas de plástico mofadas. A anônima era uma coruja. Sentia-se horripilante, proibindo-se de frequentar a sauna do Clube com medo que alguma das habitués desconfiasse de suas preferências. Sim, ela era uma coruja e ninguém jamais conheceu uma coruja sentimental. Sem volta, ela preferia morrer de uma overdose de acetona e esmalte a ter que prosseguir casada com Lúcio. Iria ligar para o 3222-3416 e marcaria uma hora. A anônima estava destroçada e, por esse motivo, desejava destroçar. Sabia que morar entre lágrimas é um frio louco. Sabia que tinha se transformado em uma infeliz televangélica, mesmo, caralho, sem ser evangélica. E que, graças a Lúcio, havia enriquecido. Mas esse não era seu mundo. O Deus de Lúcio não era o seu, um Deus sem pau era-lhe inconcebível. Mas um Deus-mulher lhe caía bem. Estava decidida, mataria a mulherzinha que havia tomado conta de seu verdadeiro ser. Lembrou de tempos idos, de que quando criança desejara ser magra, chamar-se Marta Rocha, fumar maconha e vestir biquínis fosforescentes. Adolescente, quisera ser peituda, passar na rua e fechar o comércio debaixo de uma saraivada de galanteios. Adoraria ter desenvolvido o beijo de língua como fosse uma arte sinestésica. No entanto, ao fim daquele túnel sem esperanças, o que lhe aguardava? Era chegado o momento. Exporia as vísceras, era o tempo do surto, a gota d’água, a vez da crise. Provaria que é capaz de atravessar a si mesma da bunda ao cerebelo. Dane-se que seus filhos ficariam sem os casaquinhos de lã. Dane-se que o mingau noturno gelaria sem o beijo de boa-noite da mamãe dedicada. Explodissem as lâmpadas dos abajures e adeus. Mesmo assim a anônima titubeou por milésimos de segundos, fagulhas de culpa em sua mente. Pensou que só as mães têm a capacidade de se movimentar silenciosamente feito não respirassem. Só as mães entendem ser possível observar os filhos a determinada distância ao ponto de que eles se sintam completamente protegidos. Só mesmo os filhos são real ameaça para elas. E sob tal conclusão afrouxou suas convicções um tanto. Mas então acendeu outro cigarro, olhou-se no espelho retrovisor, disse para si: Você consegue. Assim, vestiu a japona, enrolou o cachecol, e foi. Lúcio que se danasse e fosse buscar os filhotes no inglês quando a secretaria da escola ligasse informando que a mãe não aparecera. Saiu do carro e lhe correu um frio. Dentro de suas veias o sangue trincara. Para se certificar de que ainda estava viva, enfiou uma unhada no próprio pescoço. Andou apressada. Parou encostando-se contra a parede de reboco de um edifício em reforma na Praça Zacarias. Aproximou-se da fonte e lançou nela o celular. Já havia anoitecido e a balbúrdia sonora do trânsito soterrava as lágrimas que percorriam seu rosto. Finalmente a anônima se fundia à cidade, tão solitária quanto uma barata. Mães seguram a mão dos filhos antes de atravessar as ruas. A anônima segurava a respiração. E suas pernas pareciam andar mais rápido que elas (as pernas) próprias. Caminhava agora sabendo que para aqueles passos não haveria a alternativa do regresso. Espíritos que se escondem nas garagens subterrâneas dos prédios gemeram baixo. A anônima soube que eles vivem sofrendo com o movimento insano da urbe. Quando os faróis dos carros, as buzinas e os semáforos estão a toda é quando o demônio vem dar uma espiada por aqui. Que venha então, pensou, e abra uma enorme cicatriz no meio da minha testa. Então um vento correu ferindo suas orelhas. Ela trincou as mandíbulas e feito tartaruga recolheu o quanto pôde o pescoço. Chegou a um vão entre um arranha-céu e mais outro edifício. Escuridão. E mesmo a cidade parecia ter perdido o fôlego. Para qualquer direção em que olhava, sombras tomavam formas indefinidas. A vertigem se instalava. Ela escutou um chamado se esfarelando: Amor, amor, gritos desesperados de Lúcio. Volta, querida, mas não havia voltas, apenas corvos e sirenes, rugido de prédios desabando, e o coração entalado na garganta. Mãe, cadê você, mãezinha?, seus filhos sacudindo junto. Então mais um grito e, súbito, silêncio gelado, a anônima mordeu as costas da mão com tanta força que sangue e ganido se impediram um ao outro a pronúncia. Ela dizia para si mesma: Vamos lá, dondoquinha, não ache que existe sabão em pó, nem mesmo creolina, capaz de lavar essa merda toda. Foi quando ela entrou no apartamento discreto e aquecido. Do lado de fora, a chuva. Dentro da anônima algo se despregava. E ela se percebeu cada vez mais sozinha. Pelo menos agora estava realmente sozinha.
O panfleto dizia: Massagens – venha relaxar com belas garotas, 3222-3416, apartamento central, discreto e aquecido, venha sem compromisso, belas ninfetas. E, mais abaixo, em letras pequenas: Atendemos homens e mulheres. A anônima pensou: Por que não? Daria qualquer coisa por uma namorada de 16 aninhos molhando-se toda de urina em seus dedos tentaculares. No braço trazia a bolsa e três sacolinhas das Casas China (a classe média alta também frequenta as Casas China). Dentro de duas horas teria que buscar os filhos na escola de inglês. Mesmo assim segurou o celular e discou o número do panfleto sentindo-se uma kamikaze sem capacete. A anônima adorava meninas com timbre vocal que lembrassem cantoras de jazz. Adorava ruivas com batom de uva nos lábios. Adorava a postura de alguém sobre um salto agulha. Nada a satisfazia mais do que uma princesinha com cara de frequentadora do Shopping Crystal, meninas indefesas do Batel, as inocentes do Batel. O sol entrava por uma fresta do vidro fumê de seu Audi, aberto dois dedos. A anônima meteu a mão no porta-luvas e de lá tirou um estojo de maquiagem. Podia sentir o seu próprio cheiro, sabonete de frutas cítricas e entranhas a subir-lhe às narinas. Precisou se controlar para não cometer uma siririca ali mesmo no estacionamento, fechada agora com alarmes em seu quatro portas já alguns anos desatualizado. Pensava agora que sempre quisera ter um piercing no umbigo e outro no mamilo, talvez mais um no meio da língua, porém se censurava, sabia que Lúcio não aprovaria. Enfim, ela disca o número, e, ao fim do quinto toque, uma voz sexy atende o telefone. A anônima desliga imediatamente como que lutando uma espécie de jiu-jitsu com as próprias entranhas. Pergunta-se por que jamais havia revelado a Lúcio que não passa, ela, anônima, de uma ninfomaníaca descerebrada? Como era possível que enganasse o marido por tanto tempo? Sim, estava ciente de se transformar rapidamente em uma balzaquiana entristecida, fedendo a arame farpado nas coxas, com os cremes da expectativa. E por que, merda, tinha ela que fumar tanto? Esperava com sofreguidão que algum maloqueiro, algum vândalo a abordasse na esquina de casa e a violentasse. Quietinha, vagabunda, eu sei que você está louca por isso. Tudo o que a anônima queria era gozar, não importava se fosse na rua, em seu quarto debaixo de acolchoados, ou se em um banheirinho de azulejos sebosos e azuis-claros rejuntados, com cortinas de plástico mofadas. A anônima era uma coruja. Sentia-se horripilante, proibindo-se de frequentar a sauna do Clube com medo que alguma das habitués desconfiasse de suas preferências. Sim, ela era uma coruja e ninguém jamais conheceu uma coruja sentimental. Sem volta, ela preferia morrer de uma overdose de acetona e esmalte a ter que prosseguir casada com Lúcio. Iria ligar para o 3222-3416 e marcaria uma hora. A anônima estava destroçada e, por esse motivo, desejava destroçar. Sabia que morar entre lágrimas é um frio louco. Sabia que tinha se transformado em uma infeliz televangélica, mesmo, caralho, sem ser evangélica. E que, graças a Lúcio, havia enriquecido. Mas esse não era seu mundo. O Deus de Lúcio não era o seu, um Deus sem pau era-lhe inconcebível. Mas um Deus-mulher lhe caía bem. Estava decidida, mataria a mulherzinha que havia tomado conta de seu verdadeiro ser. Lembrou de tempos idos, de que quando criança desejara ser magra, chamar-se Marta Rocha, fumar maconha e vestir biquínis fosforescentes. Adolescente, quisera ser peituda, passar na rua e fechar o comércio debaixo de uma saraivada de galanteios. Adoraria ter desenvolvido o beijo de língua como fosse uma arte sinestésica. No entanto, ao fim daquele túnel sem esperanças, o que lhe aguardava? Era chegado o momento. Exporia as vísceras, era o tempo do surto, a gota d’água, a vez da crise. Provaria que é capaz de atravessar a si mesma da bunda ao cerebelo. Dane-se que seus filhos ficariam sem os casaquinhos de lã. Dane-se que o mingau noturno gelaria sem o beijo de boa-noite da mamãe dedicada. Explodissem as lâmpadas dos abajures e adeus. Mesmo assim a anônima titubeou por milésimos de segundos, fagulhas de culpa em sua mente. Pensou que só as mães têm a capacidade de se movimentar silenciosamente feito não respirassem. Só as mães entendem ser possível observar os filhos a determinada distância ao ponto de que eles se sintam completamente protegidos. Só mesmo os filhos são real ameaça para elas. E sob tal conclusão afrouxou suas convicções um tanto. Mas então acendeu outro cigarro, olhou-se no espelho retrovisor, disse para si: Você consegue. Assim, vestiu a japona, enrolou o cachecol, e foi. Lúcio que se danasse e fosse buscar os filhotes no inglês quando a secretaria da escola ligasse informando que a mãe não aparecera. Saiu do carro e lhe correu um frio. Dentro de suas veias o sangue trincara. Para se certificar de que ainda estava viva, enfiou uma unhada no próprio pescoço. Andou apressada. Parou encostando-se contra a parede de reboco de um edifício em reforma na Praça Zacarias. Aproximou-se da fonte e lançou nela o celular. Já havia anoitecido e a balbúrdia sonora do trânsito soterrava as lágrimas que percorriam seu rosto. Finalmente a anônima se fundia à cidade, tão solitária quanto uma barata. Mães seguram a mão dos filhos antes de atravessar as ruas. A anônima segurava a respiração. E suas pernas pareciam andar mais rápido que elas (as pernas) próprias. Caminhava agora sabendo que para aqueles passos não haveria a alternativa do regresso. Espíritos que se escondem nas garagens subterrâneas dos prédios gemeram baixo. A anônima soube que eles vivem sofrendo com o movimento insano da urbe. Quando os faróis dos carros, as buzinas e os semáforos estão a toda é quando o demônio vem dar uma espiada por aqui. Que venha então, pensou, e abra uma enorme cicatriz no meio da minha testa. Então um vento correu ferindo suas orelhas. Ela trincou as mandíbulas e feito tartaruga recolheu o quanto pôde o pescoço. Chegou a um vão entre um arranha-céu e mais outro edifício. Escuridão. E mesmo a cidade parecia ter perdido o fôlego. Para qualquer direção em que olhava, sombras tomavam formas indefinidas. A vertigem se instalava. Ela escutou um chamado se esfarelando: Amor, amor, gritos desesperados de Lúcio. Volta, querida, mas não havia voltas, apenas corvos e sirenes, rugido de prédios desabando, e o coração entalado na garganta. Mãe, cadê você, mãezinha?, seus filhos sacudindo junto. Então mais um grito e, súbito, silêncio gelado, a anônima mordeu as costas da mão com tanta força que sangue e ganido se impediram um ao outro a pronúncia. Ela dizia para si mesma: Vamos lá, dondoquinha, não ache que existe sabão em pó, nem mesmo creolina, capaz de lavar essa merda toda. Foi quando ela entrou no apartamento discreto e aquecido. Do lado de fora, a chuva. Dentro da anônima algo se despregava. E ela se percebeu cada vez mais sozinha. Pelo menos agora estava realmente sozinha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário