quarta-feira, 29 de julho de 2009

o pão brutal de ontem

Esses anos todos
.
Sábado à noite eu voltava do Mueller. Tinha ido ao cinema com minha amiga. Antes lanchamos na Praça de Alimentação. Três meninos vieram à nossa mesa. Minha amiga, para variar (para variar nada, ela sempre se dá bem), se deu bem. O menino, óbvio, queria ficar com ela. Então ele foi para o cinema com a gente. Os outros dois nos deram tchau, beijinhos na minha amiga e aceno de mãos para mim. Ou seja, nenhum deles se interessou por mim. Por que será? Simples: porque sou feia. Não só porque eu sou feia, mas também muito por essa razão, acumulo aqui na garganta os doze mil nojos que existem e tenho dos homens. Posso mesmo afirmar que a única qualidade do meu rosto é a de viver implorando que, à minha revelia, as pessoas, no mínimo, riam o pior (que é o indisfarçável) escárnio de mim. E se algum desejo em meu corpo se acende ainda, é porque mesmo uma lesma gosmenta a que se aproxime o fogo de um fósforo, mesmo ela, de algum modo, reagirá. Por isso gosto do frio, porque posso me esconder debaixo de camadas de roupas. Naquele sábado fazia frio. Já tinha me despedido da minha amiga e da sua presa fácil no ponto do Ligeirinho, em frente ao shopping. Eu subia sozinha a pé a rua na direção de casa, que fica duas quadras atrás do Calamengau. Lugar onde ousei pisar uma única vez. E se o forró que dançam com sofreguidão democrática lá dentro é famoso pela essência erótica a exalar dos corpos suados, para mim tampouco adiantou. Primeiro porque ninguém me tirou para dançar. E quando abordei um rapaz que me pareceu igualmente deslocado, ele disse que adoraria me conceder a honra daquela contradança, mas que eu teria de ser paciente, pois ele mancava. Por isso nunca mais fui àquele antro de felicidades e saracoteios, e nem gosto de passar pela frente. Então, em vez de ir pelo caminho mais curto e natural, que seria o de subir do Mueller, passando pela Praça do Gaúcho, ir pelo lado direito do Cemitério Municipal, cruzar a frente das Capelas preparadas para velórios, depois alcançar a frente do Calamengau, andar mais duas quadras e, finalmente, chegar em casa, optei pelo trajeto que me obrigava à parte de trás do Cemitério, onde a rua é mais deserta, a noite mais escura, e o muro mais longo. E por ali fui sem ouvir barulho, sem que vultos eu visse, sem que intuição ou mesmo premonição estalassem em meu peito espremido. Espremido porque eu ia pensando na minha amiga e em como ela sempre atraía os homens com desenvoltura. Pensava no que ela tinha que eu não, como se não soubesse de cor e em detalhes seus ene vezes ene atributos. Súbito, um susto. Havia alguém na minha frente, como se ali surgisse uma daquelas portas de vidro que você jamais imaginaria que pudessem existir em tal lugar, mas que, sim, existem tanto quanto o nariz que você, estacando, tonteando, acabou de achatar contra a transparência traiçoeira. Era um homem. Sem que eu pudesse me desvencilhar estava em cima de mim, ávido por sexo e, apesar da penumbra, para meu horror, bonito. Um lindo rosto de mais de quarenta anos de idade, fazia me beijar o pescoço. Não sei com quais habilidades me desembrulhou das roupas: jaqueta, pulôver, camisa, sutiã, calça, ceroula, calcinha, deixando-me nua sobre a calçada de gelo, com panos pendurados nos braços e pernas. Eu berrava, juro que me debatia e berrava, mas nada surtia efeito contra a anestesia que o homem parecia trazer na cola da palma das mãos. Era como se meus gritos resultassem ocos e meus movimentos tivessem a ínfima mecânica dos movimentos dos insetos. Nojo, nojo, nojo. Por que eu, uma assexuada...? Por quê, se sou feia e lesma? Por que logo alguém que os homens desde sempre jamais quiseram? E esse monstro-bonito agora. Quando ele, à força, meteu-se entre minhas coxas, eu vi, por tudo o que é sagrado que vi, os mortos, todos eles, os mortos do Cemitério Municipal a nos rodear e a ralhar intempestivos com o homem. Então, como ele os escutava, e também eu os escutava, pensei: Ele é morto, ele é um espectro. E se ele é um fantasma, também eu hei de ser uma morta. Pois posso senti-lo dentro de mim, e consigo escutar todos esses cadáveres levantados das lápides para aqui desse lado do muro. Meu deus, estou sendo estuprada por alguém desencarnado. Sim, é isso, tanto é que da boca dele vinha um fétido odor de flores, murrinhentas, foi então que eu soube: Eu vim, esses anos todos eu vim, pelos esgotos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário