quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

na verdade não era

.
.....Curso sobre colisões
..
.....Mas U pode relaxar agora. Coloca o fone no ouvido, iPod último modelo envenenado. E está rolando o som lírico-pesado da banda Normas da ABNT. De quem U é fã. Especialmente dessa música. A número três do disco. Justamente a que não toca nas rádios. E então? Então U mexe os lábios sem que saia som da sua boca repetindo os versos do refrão. E o ônibus? O que tem o ônibus? Ainda está na mesma rua? Sim. Ótimo. E não é uma rua qualquer. É uma rua só concreto armado. É uma rua só concreto armado! Lá. Desde lá do começo da rua vem surgindo um ônibus. Tonalidades de cinza, cinzopaco, cinzazul se sobressaem na rua. E também há um caminhãzinho verde passando por ali. Isso, um caminhãozinho verde. Que nem a polpa do abacate. É, pode ser, um caminhãozinho verde que nem a polpa do abacate. Mas é um caminhãzinho, não é um abacate. Na rua também existe uma placa. A placa é redonda. A placa redonda parece um pirulito fincado na calçada. Mas é apenas uma placa redonda. Que parece um pirulito fincado na calçada. Caso alguém deseje experimentá-la como fosse um pirulito... Vai saber que a placa não tem gosto nenhum. Claro. Claro! Na placa algo foi desenhado. Um Hidrante. E uma tarja vermelha riscada por sobre o hidrante. E o desenho do hidrante com a tarja vermelha parece estar dizendo São proibidos hidrantes nesse local. Na rua ainda está uma moto. Pequenina e amarela. Gema de ovo? Não. A tonalidade do amarelo da moto não lembra a tonalidade do amarelo de uma gema de ovo. A motinho é um charme. Parece de brinquedo. De plástico. Sobre a moto está um homem. Ele veste uma roupa preta, de plástico. Parece roupa de super-herói. Super-herói de luto. Envolvendo a cabeça do motoqueiro não existe nenhum capacete. Nem mesmo de plástico, ou de isopor, nem de ferro. E o motoqueiro está empinando a roda da frente da moto. Justamente porque falta a roda da frente. Isso é um defeito na motinho pequenina, amarela e charmosa? Óbvio. Por quê? Porque na sua grande maioria as motos têm roda na frente. Mesmo as motinhos pequeninas, amarelas e charmosas. A menos que seja moto de circo. Mas essa motinho está na rua. E não é uma rua qualquer. É uma rua só concreto armado. É uma rua só concreto armado! E um ônibus vem se aproximando. Desliza sobre o cinzopaco, desliza sobre o cinzazul. Na rua há um caminhãozinho verde-abacate. Mas na verdade o caminhãzinho está carregado de chá de Sene na caçamba. E o motoqueiro? Com sua moto sem roda da frente colide contra o caminhãzinho de chá de Sene. A moto passa a necessitar de socorro. É. O caminhãzinho também. Porém menos. Porque é mais forte. Todo um tempo se passa e não chega o guincho. O motoqueiro está estatelado na rua. Sangrando? Não. Fraturas expostas? Não necessariamente. Da cintura para baixo ele está estatelado no lado cinzazul da rua. Da cintura para cima ele está estatelado no cinzopaco da rua. Porra, o motoqueiro necessita socorro médico. Não necessariamente. Quê? O guincho de carregar motos estateladas chega antes do guincho de carregar motoqueiros estatelados. Até que finalmente, na maior tranquilidade, sem apito, sem sirene, o guincho de rebocar motoqueiros estatelados aparece. Ocorre que por causa da colisão o motor da moto pega fogo. O fogo se alastra. A motinho amarelinha explode. O caminhãzinho cor de abacate com todo aquele chá na caçamba, explode. E também o motoqueiro, não necessariamente, digo, necessariamente, explode. E até mesmo os guinchos, os guinchos de carregar motos e motoqueiros com sangrentas fraturas expostas, até mesmo os guinchos, explodem. E o ônibus? O ônibus que carrega U na barriga passa pela explosão intacto. Porque ele só passa pelo local da explosão horas após o acontecido. Ufa. Por causa das explosões um alçapãozinho se abre na calçada ao pé da placa que parece um pirulito. De dentro do alçapãozinho emerge um hidrante de conduta bastante expansiva. O hidrante esguicha água gelada para todos os lados como ignorando a placa de São proibidos hidrantes neste local. Toda a área vira um mingau. Isso também porque o corpo do motoqueiro derreteu junto com o resto dos escombros. O motoqueiro era muito gordo. Sua banha deixa a rua com uma camada superescorregadia sobre o asfalto. O trânsito se torna caótico. Rola um pânico com a maioria dos transeuntes. A sorte de U é que o ônibus só passa por ali quando já é tarde demais. A área já está limpa. Tudo sobre controle? Tudo. Tudo. Tudo sob controle. Os passageiros do ônibus só ficam sabendo que, por onde o ônibus passou, havia ocorrido uma tragédia bem mais tarde, quando assistem ao Jornal da Noite. Inclusive U? Inclusive U, que voltava de uma clínica. Quê? U só fica sabendo da tragédia horas mais tarde quando está vidrada no noticiário. U é dessas que ficam vidradas no noticiário. Como todas as pessoas consumidoras de tragédias. Consumidoras de tragédias.

2 comentários: