sábado, 16 de janeiro de 2010

só é ilusão aquilo que não esqueço, o resto foi real

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.....Os metereologistas não dão uma dentro. Devia estar uns três graus centígrados. Era muito cedo e a geada ainda não tinha dado sinais de que ia derreter. Depois do telefonema da tia Ruth não fiquei um minuto sequer sem pensar em você e na chácara. À noite não preguei o olho. Tinha as costas doloridas até que, não podendo acordar, pois tinha dormido, emergi da madrugada de gelo como um esquimó que se vê ser espremido pelo iglu.
.....Tomei café com leite e um misto-quente na panificadora na esquina do meu prédio, em seguida entrei no primeiro ônibus e fui desembarcar só no terminal de Santa Felicidade. O dia ainda escuro. Andei até a nossa velha rua sem saída, quase não a reconheci com seu asfalto novo em folha, ainda molhado, por cima do chão batido.
.....Quase como um antropólogo, entrei. Você ficaria decepcionada. Mudaram as fechaduras. As fechaduras agora são não haver portas na casa. Circulei a antiga sala de estar. Há paredes ainda, mas são já pré-escombros. Os quadros onde estão? Nalgum museu, foram doados por tia Ruth após a morte de minha mãe. Mas mesmo não estando ali a memória dos quadros me pesou assim como a bagagem da existência nos ombros, nos ossos. Elogiar o que da casa de agora? Poeira e pernilongos. A casa, a casa, a casa prestes a ser varrida pelo vento. Aliás, varrida por ladrões de torneiras, vasos sanitários, azulejos, telhas, tomadas, interruptores de luz, fiação elétrica.
.....Está claro que a bancarrota desse lugar teve início com a saída de minha mãe e da tia Ruth quando, já sem o meu pai e com o Tatit fazendo especialização nos EUA, resolveram se mudar para o apartamento do Champanhat.
.....Imagino que seja assim, uma casa retém o espírito das pessoas que a habitaram. Quando essas pessoas vão embora seus espíritos tendem a segui-las, mas algo deles permanece. No caso da nossa, que nada mais guarda, que é já uma caveira, teve até mesmo o esqueleto depenado, nunca a tinha visto antes tão silenciosa. A mesma casa em que um dia a disposição interna dos móveis, a ausência de televisores, a mesa redonda na cozinha, obrigava-nos o vínculo.
.....Mas não foi difícil como pensei que seria pisar suas tábuas rangentes, vislumbrar a amplidão da sala onde antes ficavam os armários, a cristaleira, o relógio-cuco pendurado, depois ir até a biblioteca, refazer a fila para tomar banho, ver a mesma luz da manhã que invadia nossos quartos, a casa outrora preenchida, viva, agora, assim.

2 comentários:

  1. Vc voltou! ; )
    E eu só ia passar aqui de novo em fevereiro!
    Bom que resolvi dar uma olhadinha.
    E agora quase posso sentir o cheiro do que restou da casa.
    Bom te ler. ; )
    bj.
    C.

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  2. legal, c. bom que você veio antes. eu também só ia vir em fevereiro, mas sou meio viciado. e, além do mais, essa casa tá me dando alguma insônia, rs. bj. lepre.

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