Entrevista com Vovó Burroughs, a mal-morrida (2)
Não, não foi nada disso. Alguém me disse: Teu pai te mimava, guriazinha, com treze anos você tinha de tudo. É mentira, meu pai não me mimava porra nenhuma. Só que a tosse do meu pai era reconfortante. Por mais que eu soubesse que era tuberculose o que ele tinha. Naquele tempo as pessoas tinham doenças assim, tuberculose, sífilis. Preferia que ele tivesse tido sífilis, mas papai era corretíssimo. Era um médico excelente. Da minha mãe eu lembro pouco, ela dançando nos aniversários das minhas irmãs. É, eu não gostava de ver minha mãe dançar, dava como que uma vergonha. E eu não gostava muito também das minhas irmãs. Para mim, na minha cabeça, eu não tive irmã nenhuma. Cê sabia que meu pai nunca usou camisa de mangas curtas? Acredita? Meu pai era corretíssimo. Da mamãe quase não lembro. Ela dançava nas festas, gostava de música. Tocava um pouco de piano. Eu? Nunca consegui. Me enfiaram na aula de piano. Queriam que eu dançasse balé. Nunca tive saco para essa frescurada. Mamãe era um nojo. Viciada em baralho, perdia um dinheirão jogando baralho. Metida a chique. Tomava chá com as amigas toda terça e quinta. Teve câncer, morreu de câncer. Não fui capaz de chorar no enterro dela. Para ser sincera, nunca senti falta da minha mãe. Não sei, mas acho que até hoje não superei, não a sua morte, mas o fato de não ter sofrido com sua morte. Mas nessa altura do campeonato, o que é que importa? Se tiver céu ou inferno, aposto que mamãe vai estar lá me esperando em algum deles. Porque é claro que o engraçadinho do Senhor vai me mandar para o mesmo lugar que minha mãe, ele não vai querer me ver morta e tranquila, não mesmo. Ok, vou preparada. Seja o que tiver que ser, não é mesmo? É como eu estava dizendo, papai era um excelente médico. Corretíssimo. Amoroso, sabe? Veio do Nortão Pioneiro. Um piazinho órfão. Trabalhava numa fazenda de soja. Aí resolveu vir para cidade estudar. Diz que passou fome e o diabo, aquelas merdas que acontecem até hoje com aviltante número de pessoas. Foi amigo de toda essa gente aí o papai. Os escritores simbolistas. Era, era conviva lá do Instituto Neo-Pitagórico. Eu? Já nasci em Curitiba, né? Na Maternidade Nossa Senhora de Fátima. Não. É mentira mesmo, meu pai não me mimava. Não era super-protetor porcaria nenhuma. Eu é que não puxei por ele, digo, em relação a medicina. Eu queria ser uma humanista. Salvar tudo e todos. Essa merda de mundo. Depois desisti. Desisti logo. Minhas irmãs viraram tudo umas dondocas. Umas putinhas de luxo da aristocracia. Eu fui ser escritora. Não que eu quisesse exatamente, mas aconteceu. Fazer o quê, não é mesmo? A vida. A vida. Sei lá. Só sei que quando vi já tinha preenchido um caderno inteiro. Eu escrevia muito mesmo. Era para valer a coisa. Comprava caderno e caneta e pimba. Falava basicamente mal de Deus. As freiras do Sacré-Coeur ficavam loucas. Uma droga de escola, era o que eu achava na época. Não que fosse uma droga mesmo, mas era o que eu achava, poxa vida. A gente era obrigada a estudar lá. Toda filha de pais corretíssimos estudava lá. Viramos todas umas prostitutinhas enrustidas. Umas neuróticas. E um punhado de lésbicas também. Claro, foi ficando na moda. Poesia francesa. Aqueles simbolistas pederastas. Eu queria ser o Rimbaud, entende? A cabeça dá um treco. Dá-lhe falar mal de Deus. As madres se escandalizavam. Chamaram meu pai e tudo para conversar. Mais de uma vez. Não lembro se minha mãe ia junto ou não. Acho que não, sei lá. Não sei não. Sinceramente, acho que as freiras se chupavam a noite inteira. Sério. Não todas, obviamente. Não estou querendo aqui falar do que não sei, mas do que desconfiava na época. É que teve uma vez que entrei no banheiro e estava uma lá se lavando. Toda peluda. Elas não se depilavam. Pelo menos não aquela. Acho mesmo que elas não tomavam banho direito. Umas fediam mesmo. Pois é. E eu fazia meus poeminhas inofensivos. E elas dá-lhe bradar contra e amaldiçoar meus poeminhas inofensivos. Como é que pode, a filha de um homem corretíssimo como o seu pai, um médico ilustre, um humanista, e a filha escrevendo cada coisa dessas!? Fodam-se, eu pensava. Fodam-se aquelas sapatonas. E além do mais, nunca achei que meu pai fosse um humanista. Corretíssimo, isso ele era, mas humanista não. A minha mãe? Não falava nada. Só descia a cinta. Me colocava de castigo. Essas merdas que mãe faz com filha rebelde. É, eu era avançadinha. Por causa desse meu temperamento me ferrei para chuchu. Mas também tive bons momentos. Cê veja, fiquei velha e continuo escrevendo mal de Deus. No meu mais recente poema, que saiu naquela revista do... Como é mesmo o nome daquele editor aqui da...? Não importa. Pois veja as bobagens que andei jogando lá. Eu entendo que existem carboidratos do bem e carboidratos malvados, não é? Então fiz essa oração: Que Deus te proteja das gorduras trans, do bacon, do Baconzitos e de todas aquelas merdas da Elma Chips, das batatinhas fritas do Mac, e do Big Mac, e do Funcionário do Mês. Deus te proteja. Esse querido Deus parceiro da Sandall fator 30. Esse Deus inimigo dos raios ultra violeta. Inimigo dos canos de escape dos caminhões da Ford. Esse Deus maravilhoso, botânico da Boticário. Parceiro dos condicionadores de cabelo. Esse Deus feito à imagem e semelhança do Brad Pitt. Sócio investidor das mais bem equipadas academias de musculação, de fitness. Sócio investidor das clínicas de estética. Prestador de consultorias para fabricantes de antiácidos e anfetaminas. Esse Deus da Vitamina C, D, E, K, A, B, B1, B2, B12. Esse da Aspirina. Do sabonete Phebo. Das lâminas da Gillette. Do Polvilho Anticéptico Granado. Que esse Deus, que amamos, me proteja e te proteja de sarnas e micoses. De artrites, alzheimers e artéria esclerose. Obrigada Deus. E assim é a minha oraçãozinha. Mas estou falando com esse Deus, digamos, esse Deus bem específico. Ah, tem uma segunda parte. É assim: Obrigado Deus pelo aparelho nos dentes, pelas lentes de contato, pelas botinhas ortopédicas, e por essas maravilhosas próteses. Enfim, é isso o poema. Agora, a quem diga que estou gagá. Me diga você, estou gagá? Quer saber?, se naquela época existisse rock´n roll por aqui, eu tinha sido a Amy Winehouse, entende? Não. O negócio é que eu era da pá virada mesmo, desde pequena. E a minha mãe era de me surrar também desde que eu era pequenininha. Meu pai não, nunca me bateu. Queria conversar. Eu me abria com ele. O velho era culto. Um positivista. Um, vou ser boazinha, semi-humanista. Não pense você que tinha Friedrich Nietzche por aqui naquela época. Era pouca gente que estava antenada. Aquela coisa de raiz e radar, sabe? O meu pai, coitado, era católico praticante, você sabe como é que é. A psicanálise estava meio que aparecendo na Europa. Tinha recém pintado essa onda toda. Aqueles malucos surrealistas. Nada disso. Mas não demorou muito, apareceram uns doidões de pedra aplicando em você seus métodos revolucionários de vanguarda. Se você tivesse dinheiro, ótimo, choquinho nas têmporas. Papai me levou num psiquiatra amigo dele. Cê não sabe como é que era. Cocaína era vendida na farmácia. Farmácia a gente escrevia com ph. Ué, era no tempo em que a gente escrevia farmácia com pê-agá. E eu mandava ver na cocaína. Tem até aquele fado mais ou menos dessa época. Ah, você não vai lembrar. Ouve só: Maldita cocaína que roubaste meu amante / que para sempre enlouqueceu / o teu poder fascina / és um corpo de Bacante / com melodias de Orfeu / Maldita cocaína / odeio-te gosto de ti / és a minha companheira / embora a mais traiçoeira / que eu amei e conheci. Era assim, papai queria dar um jeito para eu parar de falar mal de Deus. E eu, só hoje entendo, claro, mas intuitivamente achava que Deus era cocainômano.
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