sábado, 2 de maio de 2009

pecinhas para uma tecnologia do afeto

Neve
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Em cena dois enormes isopores cheios até a boca com cubos de gelo azuis. Num dos isopores está escrito em letras que pulsam: CAIXA TORÁCICA. No outro isopor, com a mesma fonte e estilo, lê-se: ESTÔMAGO. Entre os dois isopores, bem no meio da cena, está ele, imponente. É um iceberg e tanto. O chão em que a platéia está é uma crosta de gelo, antes de entrarem no ambiente glacial esses pingüins se depararão com o seguinte aviso: MELHOR CONGELAR OS PÉS DO QUE FRITAR OS MIOLOS. Bom, neva. E essa neve, diferentemente da neve da noite de ontem, essa neve não tem gosto de algodão doce. Neva, pois não. Mas essa é uma neve falsa. Tudo em cena é verdadeiro, mas a neve é falsa. As coxias por sua vez, seja qual for o espaço cênico escolhido para a apresentação, as coxias estarão absolutamente reveladas ao público. Igualmente o camarim, com todas as bugigangas que as atrizes geralmente trazem para sua preparação, o camarim ele estará completamente à mostra. E as coxas da atriz, as coxas também estarão desnudas, entregues. Nessas coxas, na parte de fora delas, lê-se: ICEBERG. Neva, e a neve é falsa, é verdade, mas a atriz joga limpo com a platéia. A atriz só quer provar, e isso não é fácil, que a possível ilusão provocada por sua performance, que por hora se desmonta aos olhos nus dos expectadores, a atriz, considerando uma platéia lotada de pingüins tristonhos, a atriz só quer provar que quanto mais limpo ela jogar com esse povo do frio e consigo mesma, mais divertida e profunda será a experiência a que se propõe. Mas essa experiência qual é? A seguinte: nessa peça a atriz tem apenas uma ação especifica para executar, qual seja, a de tirar intacto todo o iceberg do fundo do mar como retirasse a espinha inteira de dentro de um peixe, ou ainda uma espada afiadíssima que aos poucos escorregasse desde o estômago, tórax, até ser expulsa pela boca de qualquer pessoa que a atriz tenha algum dia realmente amado. Certo, depois do iceberg todo fora do oceano, ali mesmo no palco de gelo, com a espada afiada de amor antigo, a atriz vai fatiar em partes iguais o iceberg, distribuindo as postas cruas a todos os famintos. Durante a ação toda, às vezes aparecerá ora uma gravação falada na voz dela mesma, noutras o canto rouco de um homem, dando o seguinte texto.

a geometria do frio em teu semblante conta a fábula desse lugar distante em que vivemos sem conseguir decifrar o enigmático sorriso do Boneco de Neve escondido feito uma foca em sua cave mas da tua boca com vapor da bebida quente conhaque com chocolate e leite saltam palavras de consolo virando fumaça na frente dos olhos cansados de assistir a própria desgraça você chora flocos de solidão que vão molhando o teu rosto como naquela madrugada de 1975 quando teu irmão nasceu e você desejou calefação para todos os jovens corações que receberam como herança a serração das manhãs e lamentando você diz feche a porta e a janela o calor já era vai gear na primavera você diz feche a porta e a janela o calor já era vai gear na primavera você está procurando entender qual o rumo das pegadas do Abominável Homem das Neves qual o rumo das pegadas do Abominável Homem das Neves em quem você se transformou.

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