quarta-feira, 13 de maio de 2009

meu sonho é participar de um filme de pedro almodóvar

Entrevista com Vovó Burroughs, a mal-morrida (3)
Nas épocas em que ficava internada eu me rebaixava para conseguir qualquer coisa. Mas eles não cediam, eram severos comigo. Fui internada logo após uma das minhas irmãs ser violentada pelo marido. Presenciei tudo, sabe? Ela foi espancada. Eu, que já vinha definhando, degringolei. Fiquei em estado de choque por meses, a ponto de me mijar de medo enquanto tentava dormir. Isso que aconteceu com minha irmã traumatizou todas nós. Acabou com meu pai. Foi a gota d´água para o câncer da mamãe. O negócio de violência contra a mulher sempre foi muito sério. Tem essas gurias que aceitam. Passam maquiagem e tocam a vida. Minha irmã fez exatamente isso. Parecia que eu estava sofrendo mais do que ela. Tem aquela frase clássica do Jack London: “O Homem é o único animal que se diferencia dos demais por agredir as suas fêmeas.” Para ser bem sincera com você, não acho mesmo muita graça em piadinhas machistas. No entanto não me iludo. Não mais. A verdade é que a maioria dos homens tem em si alguma boa dose de misoginia. O negócio é que o cara começa com brincadeirinhas. Tapinhas na bunda. Puxãozinho de cabelo. De repente já está te enchendo de porrada. Lembra? Não teve aquele estudante, em 89, que entrou armado numa Faculdade de Montreal berrando que ia acertar só as mulheres, as feministas, lembra disso? Quatorze gurias se fuderam. Na Etiópia teve um caso pavoroso. Um valentão psicopata jogou ácido no rosto de uma guria que ele assediava há 4 anos. Ela não quis nada com o batente, aí o filho da puta jogou ácido no rosto dela. Ah, essas atrocidades a gente fica sabendo na Internet. Eu não saio do Google. Leio tudo lá. Queimei minha biblioteca toda. Agora é só no Google. É uma barbaridade o que a gente sabe pela Internet. É por essas e outras que eu já quase arranquei o pau de um idiota com o dente. Tá pensando o quê? Ah, eu tinha essa mania de trepar com qualquer um. Um bando de bêbados. Eu dava porque o cara tinha publicado um livro. Porque outro era pintor de quadros expressionistas. Sabia que um dia eu ia me ferrar para chuchu. Sabia que ia. E me ferrei, né? Dei para toda uma geração de artistas aqui da cidade. O Danton pode ser um gênio, mas é péssimo de cama. Mas não é violento, não é. Isso não. A verdade é que o Vampirão é uma flor de pessoa. Mas o problema da minha irmã, né. Então, bem antes disso acontecer com ela, sei lá, quando eu tinha uns 5/6 anos, uma vez escutei o meu pai comentar, na hora do jantar, que uma guria tinha ficado grávida. Só que o sujeito que engravidou ela não podia assumir. Não sei, acho que era casado com outra. Típico, né? Só que aí o cara começou a chutar a mulher. Primeiro puto, numa reação de ignorante. Só que o moço foi tomando gosto pela coisa. Claro, devia ser um reprimido de primeira. Foi enfiando o pé. Chute na barriga dela. Bateu tanto que a guria não agüentou e morreu. Eu tinha de 5 para 6 anos. E lembro da história até hoje. A minha mãe foi vomitar no banheiro. Acho que ela fez uma projeção, entende? Se projetou na guria. Porque minha mãe tinha culpa no cartório. Ela batia em mim e nas minhas irmãs. Soubemos mais tarde que ela batia na gente porque ela traia meu pai. Quer dizer, isso é uma visão minha, meio psicanalítica, entende? Mas nesses casos o Dr. Freud estava certo mesmo. Tudo que é de fundo sexual pode ser monstruoso. É a porra da culpa que as religiões ocidentais incutem na nossa cabeça. É curioso, né? A minha mãe puta enrustida trair meu pai corretíssimo. Eu achei que nunca veria. Como achei que não veria minha irmã no estado em que vi. Achava que aquilo era coisa de mafioso italiano nos EUA. Mas eu vi, minha irmã lá, em estado de choque. As roupas todas rasgadas. Sangue nas coxas. Parecia uma morta dos filmes do Brian De Palma. O sujeito, um comerciante rico da cidade, dizia que ela mereceu. Que tinha pedido. Que tinha sido decorrência de seus atos vulgares. Antes ela tinha um anel de noivado. E acabou com um problema no maxilar que durou anos. É claro que é legal o cara ter ciúme de você. O que eu não suporto são esses malucos. Igual aquele de uma novela aí já meio antiga, lembra? O moço andava para cima e para baixo com uma raquete de tênis. Surrava a guria com uma raquete de tênis. É aquele ator brasileiro parecido com o Tom Hanks, lembra dele? Mas ó, não me confunda. Não sou uma dessas feministas pentelhas. Eu acho que mulher não tem que ser feminista. Tem que ser feminina. Tem que ser mulher para chuchu, entende? Agora estão vindo com essa, que ciúme é agressão contra a mulher. Eu não concordo com isso. Acho ciúme bom. Até aqueles famosos tapinhas. As pessoas têm que entender que paranóia é uma coisa, ciúme é outra. Isso são assuntos que eu tive que superar. Eu já fui violentada. Só que na época eu nem sabia. Eu estava tão ferrada, ferrada para chuchu, que para mim aquilo era normal. Foi preciso muito amor para superar. E eu superei, tá pensando o quê? Nossa, quando eu lembro. Cê sabe como as coisas são: Quanto mais na lama você fica, mais na lama você quer ficar. Eu tinha caído na esbórnia radicalmente. Só lidava com a escória. Só freqüentava lugares falidos, sujos. Cheguei num ponto em que tava morando em fábricas abandonadas. Lugares demolidos, que eram lugar nenhum. Isso ajudou a matar o papai. Para mim é óbvio. Vou carregar essa culpa para o caixão comigo. É a única coisa que eu não perdoei em mim. Ter sido responsável, mesmo que em parte, pela morte do meu pai, isso é insuperável. Sei que eu estava magra, caquética, ratazana com olheiras, entende? Tudo que ouvia de quem pedia ajuda era um cala a boca, vaca, e chupa. Tiravam o pau para fora. E eu chupava da melhor forma que conseguia. Passava a língua na cabeça. Chupava as bolas. Engolia o máximo que conseguia. Respirava ofegando. Depois eles botavam no meu cu. Minhas unhas quase furavam a parede onde me apoiava. Sentia muita dor. Eu não tinha mais um corpo. Nada em mim me pertencia mais. Não sabia quem era aquela refletida nas vitrines. Uma bruxa na frente do espelho. Eu não me reconhecia, entende? Um rosto de caveira. Um olhar sem história, exalando medo. Tinha virado uma magra ratazana faminta. Branquela e marcada. O pescoço inchado. Arranhões e hematomas por todo o corpo. Os peitos clivados, uma vala de esgoto. E nessa altura a minha irmã já estava recuperada, freqüentado o Café das Belas Artes. Amiga íntima de toda aquela turma. Sabia que ela até chegou a publicar um conto dela na Joaquim? E eu, a escritora da casa, na rua, fazendo o que os maloqueiros viciados mandavam. Sempre depois da putaria, que só acontecia quando estava muito bêbada, eu me encolhia num canto. Chorava. Dividida entre choro e vômito. Passava a mão por dentro da coxa. Sangue. Escorria sangue. E a porra deles, aquela gosma misturada. Meu estômago era uma esponja seca. Perambulava semi-nua para lá e para cá. Suja, melecada, podre. Tentava me esconder dentro daqueles panos mínimos. A calcinha empoçada. Mesmo um William Burroughs sentiria pena de mim. Só citei ele porque temos o mesmo sobrenome, mas não temos nada que ver um com o outro, quando muito talvez pelo fato de eu parecer uma personagem de seus livros. Só isso. Da primeira vez que fui internada papai estava confiante que eu ia melhorar. Na clínica me desintoxicaram e trataram das doenças venéreas. Só que na base do choque, né? Isso te assusta? Espero que sim. Isso não é literatura, apesar do Burroughs. Foi desse jeito mesmo que aconteceu. Nessa cidadezinha de merda eu sou a personagem descalça, entende? Sem calcinha. Sem papas na língua. O anjo falido. Veja, sou uma velha imbecil, que ainda não aprendeu a ficar com as pernas fechadas. Só uma velha decadente ficaria assim diante de alguém que não vê mais nada nessa velha do que exatamente uma velha imbecil e inescrupulosa, não é mesmo? Você quer saber, né? É isso. O que mais você quer saber? Que eu acordo há mais de 30 anos pontualmente às 14:14. Que se eu não faço minhas abluções até às 16 horas, não consigo fazer mais nada. E devo confessar que são raros os dias em que consigo acabar minhas abluções antes das 16 horas. Em resumo, nunca faço nada dos meus dias, excetuando as abluções, não é mesmo? E a Internet, claro. A bendita Internet. Bem, todo mundo está careca de saber que o sol não é muito meu amigo. O que mais?

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