Entrevista com Vovó Burroughs, a mal-morrida (1)
Sabe como é que era a cara dela? Era arredondado assim. Parecia uma, sei lá, uma... Vai, uma lua cheia. Umas sobrancelhas espessas, graves, sabe?, pesadas, escuras. Andava sempre de cabelinho curtinho, quase raspado. Quase. Apesar disso você notaria facilmente que havia volume ali, pêlo grosso mesmo. Uma juba de leão, daquelas. Só que aparada. Sempre assim, curtinho. Ela era, em suma, uma mulher peluda. O antebraço bem servido, sabe? Aquela penugem aqui do lado da orelha. Você sabe, né?, as mulheres peludas são umas devassas. Não ia ser essa que fugiria à regra, não é mesmo? Eram feições realmente marcantes. Se me perguntassem se eu a achava bonita, eu diria que ela era... inexplicável. Que eu não saberia tão facilmente se aquilo era ser bonita ou não, mas que me provocava. Que me provocava quase insuportavelmente. E se tesão não é beleza, meu filho, então não sei o que é. Aquilo era uma coisa de herança, entende? Os avós paternos dela tinham vindo do Líbano. O pai casou com uma italianona. E deu no que deu. Nos conhecemos em uma festividade na casa do Dr. Lupércio. Não lembro exatamente que tipo de festa. Havia coisas como aquilo toda semana. Eu era obrigada a ir, por causa dos meus pais. Para mim, não tinha escolha. As senhoras estavam sempre numa elegância esnobe. Eu diria até, inabalavelmente fantasiadas dentro das meditas impostas pelo rigor da moda. No entanto, eu fazia questão de ir trajada com o que meu humor indicasse no momento. Ou seja, eu não me vestia que nem uma provinciana empolada, mas quase como os empregados das provincianas empoladas, se é que me entende? A verdade é que era muito jovem, trazia em mim o, digamos, na falta de palavra melhor, afã do romantismo ingênuo. Pois bem, havia uma semelhante minha fumando e rindo, bastante à vontade, entre os polacos na roda dos motoristas. Quem era? Tinha um jeito desajeitado. Estabanada derrubou licor na camisa de um deles. Não teve pudor em esfregar com um pano a mancha. Aquilo a deixava de fato linda. Totalmente livre. Sim, porque naquela época uma mulher jovem, de família aristocrática, dando trela para motoristas, isso para mim era liberdade extremada. Quem dirá passar um paninho na camisa de um deles. O que não pude deixar de notar foi que havia uma doçura, digamos, loquaz em seus gestos, que não eram nem contidos tão pouco espalhafatosos. Ou o Chopin que soava no salão estava funcionando em mim como o efeito de um veneno afrodisíaco? Me diga você. Eu estava molhada. Pensa bem. Nunca antes tinha experimentado aquela sensação só olhando para uma pessoa. Havia a janela fechada nos separando. Havia o jardim. Os motoristas polacos. Enfim, estávamos longe o bastante uma da outra. Mas por algum momento nossos olhos se cruzaram. E aconteceu. Mas já tem muito tempo. Nem sei como é que lembro. Como vê, as coisas mudaram por aqui, não é? O que me diz, hã?, dessa imbecil aqui? Essa velha chorona. Essa velha imbecil, imbecil. Imbecil! Imbecil, imbecil. Imbecil. Não sinta pena de mim. Só eu mesma posso sentir pena de mim. Você acha que eu estou morrendo? Achou certo. E daí? Acha que eu me importo? Hein? A morte é como deitar na grama e sentir ela crescendo aqui ó, por dentro de você. Meu amigo, a morte não choca mais ninguém. Ninguém mais morre de overdose. As pessoas hoje em dia só morrem de câncer. E, foda-se, está todo mundo acostumado. Todo mundo resignado. Ah, coitado, câncer no... sei lá onde, mas também, só comia no Mac Donald´s. E ele?, peninha, câncer no esôfago, claro, era o rei do Free Ultralight. E aquele ali todo soltando fumaça pelos ouvidos? Câncer no cérebro, assistia demais novelas na TV. A morte não merece mais o teu respeito. Ela não leva nada do que você gosta. Ela não leva tuas roupas. Teus perfumes. Teus sapatos. Tuas louças. Teus jogos de talheres de prata. Não leva os pneus das tuas máquinas. O motorzinho da geladeira. A morte não leva teus poeminhas de amor e morte. Teus postais de viagens para o interior do Paraná, compreende? Ela não leva a tua carteirinha da Amil Assistência Médica. A porra da morte não leva a porra da ambulância que te leva, cedo ou tarde, para morte. Sabe o que a morte leva? Teu espanto, teu susto, teu paladar. Ela é inimiga do pronto-socorro. Leva tua inteligência. Leva teu amor próprio. Os teus conceitos sobre o amor. Lembra daquela guria lá com os motoristas? Pois é. Sabe o que é a história de alguém? Toda a história de uma vida? É acumular esquecimentos. Se eu tenho alguém que me ame? Eu tenho o meu poodle. O meu poodle imaginário, que não late. Ah, sim, além do cãozinho, tenho também esse álbum de família cheio de auto-retratos.
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